Histórias da Unisc

       

 

AS DORES DA VITÓRIA

Tiago Pellizzaro*

Dez horas e quinze minutos de uma abafadiça manhã de domingo. Na raia número quatro, Fabiano Peçanha, da Universidade de Santa Cruz do Sul, anuncia a sonorização do estádio. Era 6 de junho de 2004. Complexo do Ibirapuera, em São Paulo. Final da prova dos 800 metros rasos do Troféu Brasil de Atletismo. Poucos instantes restavam para minha última tentativa de poder representar o país nos Jogos Olímpicos de Atenas. Menos de um minuto e quarenta e seis segundos. Deveria atingir essa marca para, dois meses depois, competir na capital dos inventores dessa modalidade esportiva, a primeira que a humanidade veio a praticar.

Deparei-me com crudelíssimos obstáculos: o diminuto tempo a ser cravado na corrida, a temperatura escaldante, e o competidor Osmar Barbosa. O pior deles, no entanto, era uma dor na coxa esquerda, agravada no dia anterior durante a semifinal do torneio. Incentivado pela alegria de estar completando 22 anos, enfrentara o percurso como se espinhos nele não houvesse. Que pesaroso engano! Nunca fora tomado por tamanho sofrimento. Via-me, na iminência da largada, gemendo e resistindo a pousar o pé esquerdo na pista por causa da dor. A sensatez mandava desistir.

De repente, fui invadido pela lembrança da abnegação com que meu pai sempre defendeu o atletismo como instrumento de integração social, de redução da criminalidade, de combate às drogas e de geração de oportunidades profissionais. Em 2000, a UNISC implantou um projeto de formação de atletas, cuja coordenação das atividades a ele coube. Essa obra, em sete anos, registra mais de uma centena de participantes, abrangendo a faixa dos 12 aos 60 anos.

Para ser bem-vindo ao atletismo, aos treinos e às competições, basta calçar um par de tênis e começar a correr. No dia em que o projeto transcendeu à teoria e abriu-se ao relacionamento com a comunidade, um grupo de adolescentes tomou o rumo do complexo esportivo da UNISC. Tímidos, contemplaram as quadras do ginásio, o campo de futebol e aquela área elíptica bordada com listras brancas, onde deveriam aprender a alargar suas passadas, o que seria possível através da aplicação de técnicas para adquirir condicionamento, para melhorar a resistência e aumentar a velocidade.

Naquele dia muitos usavam chinelos. E o esporte também segrega. Sem o tal tênis, fica-se marginalizado. Bem-aventurados os doadores de calçados, os apoiadores financeiros, os que se sensibilizaram com a causa e agiram, porque ajudaram quem estava nu. Ajudaram a produzir campeões. Sim. O Julinho, o Cláucio, o Pedro, a Aline, a Fernanda, a Itiara, a Sabine e os demais integrantes do projeto são todos vencedores.

Momentos antes da decisão minha mente projetava o semblante aguerrido de cada um deles. Pressentia que estavam aguçados diante da tevê, sintonizada no canal do Marinho. Santa Cruz em peso, o Rio Grande do Sul! Gente espalhada por todo o país torcia por mim. Não me era dado o direito de decepcioná-los, mesmo que sequer desconfiassem das minhas agruras.

Ouvi o estampido de revólver, acelerei e tomei a dianteira. Osmar Barbosa, que invariavelmente sustenta a ponta na primeira volta, desta vez ficou atrás. Sua tática era-me prejudicial. O desgaste se acentua ao que corre isolado. Claudicava. Que perna esquerda danada! Precisava compensar com a direita. E conseguia, inexplicavelmente. Tinha de ser mais rápido que o relógio. Um minuto e quarenta e seis segundos. É tempo razoável para falar ao telefone (maldito custo da ligação!), deliciar-se com músicas (quase completas) do primeiro álbum dos Beatles, pegar extrato de conta (com movimento considerável) no banco, ou aventurar-se num tobogã (o bom dura pouco).

Na arquibancada rente à linha de chegada, meu irmão cronometrava, irrequieto, o desempenho. Iniciei a última volta folgado na liderança. O ritmo não podia decair. O corpo tencionava cambalear, mas a mente o amparava, nutrida pelas imagens dos valiosos amigos do projeto de atletismo da UNISC.

Restavam ainda alguns segundos, um punhado de metros. A euforia definitivamente contagiou o estádio. Na reta final, Osmar Barbosa estugou o passo, ameaçando minha vitória. De relance, visualizei sua aproximação e reagi, despendendo as poucas energias que me mantinham ereto. Cruzei a chegada com o peito uma nesga à frente do dele. Meu rosto carregava pavorosa expressão, fruto do descomunal esforço. A câmera evidenciou o tormentoso esgar. Os espectadores perceberam-no.

Venci, jamais tendo experimentado tal sensação. Não me era mais permitido correr, nem caminhar. A prova, o desafio contra o relógio, o frenesi dos torcedores, tudo acabara. Menos a minha dor. Esta me açoitava impiedosamente. A aflição se intensificava. A organização do torneio estava em apuros. O normal era a divulgação do tempo estabelecido pelos competidores logo após o término da corrida. Transcorriam-se minutos e nada, nada do derradeiro resultado.

Quis consultar meu irmão, pois aquilo me torturava. Será que havia superado o índice olímpico? Existia probabilidade. Pelo menos assim pensava. Fui saltitando com uma só perna ao seu encontro. É questão de centésimos, bradou ele. Claro. Como poderia afirmar peremptoriamente qual teria sido minha marca com aquele vulnerável sistema de cronometragem manual? Esperar, diante das circunstâncias, era inexorável.

Até que pela sonorização do estádio foi manifestada a verdade que tão obstinadamente desejava conhecer. Fabiano Peçanha, da Universidade de Santa Cruz do Sul, é o campeão dos 800 metros do Troféu Brasil de Atletismo na categoria masculino, com um minuto, quarenta e seis segundos e doze centésimos, pronunciou o locutor. Estava fora da Olimpíada por “doze centésimos”. Míseros “doze centésimos” me afastaram da Grécia! Bem que o rapaz poderia ter dispensado no anúncio os “doze centésimos”!

Duas semanas depois, fui submetido à cintilografia na perna esquerda. O exame apurou fratura do fêmur. A ocorrência se deu na semifinal do sábado ou na finalíssima do domingo, porque, assim que se concluiu o campeonato, fiquei impedido de me exercitar. A dor se justificava, já a vitória se constituía num enigma, cuja decifração devia levar em conta o imprescindível e miraculoso impulso ocasionado pelas pessoas que, com sua simplicidade, persistência, altivez e coragem, muito enobrecem o projeto de atletismo da UNISC.

 

Associação Pró-Ensino em Santa Cruz do Sul - APESC